O ramo da engenharia genética tem ganhado força no tratamento de diversas doenças. Recentemente, com o avanço das imunoterapias com células T expressando os CARs (Receptores Quiméricos de Antígeno ou Chimeric Antigen Receptor), desenvolveu-se vetores seguros para modificar o DNA da célula. Esse tipo de terapia vem mostrando resultados muito relevantes no combate de tumores derivados de linfócitos B. No mesmo caminho, o custo para se tratar com essa imunoterapia também chama a atenção, podendo alcançar cerca de meio milhão de dólares por paciente.
Esse alto custo pode ter várias explicações: o uso de vetores virais para modificação celular, a necessidade de centros especializados e equipados com aparato de biossegurança e, principalmente, o fato dessa terapia ser personalizada, ou seja, elaborada especificamente para cada paciente. O processo basicamente consiste em retirar as células T do paciente, modificá-las em laboratório para expressar o CAR, expandi-las e reintroduzi-las no paciente de forma autóloga. Há a possibilidade de utilização também de células de doadores saudáveis para gerar as células CAR-T. Nesse caso, assim como acontece em um transplante alogênico de medula óssea, pode ocorrer a chamada doença do enxerto contra o hospedeiro. Este fenômeno decorre da introdução de células T exógenas no indivíduo e o reconhecimento, por parte destas células (através de seus receptores de células T – TCRs), de proteínas de tecidos saudáveis do paciente.
Para contornar este risco, uma alternativa é “desligar” o gene do TCR através de ferramentas de edição genética. Esta estratégia já foi testada clinicamente com células editadas geneticamente com TALENs para desligar o TCR e posterior adição de um CAR anti CD19 mostrando eficácia clínica e, mais recentemente, com edições mediadas por CRISPR para a deleção do TCR e da molécula PD-1 , seguidas da adição de um novo TCR contra o antígeno tumoral NY-ESO-1. Diversas empresas vêm desenvolvendo estas abordagens de células T com TCRs deletados com o objetivo de utiliza-las comercialmente como um produto de amplo uso, ou “off the shelf”, como são conhecidos.
Refinamentos no desempenho destes linfócitos transgênicos também são possíveis. Justin Eyquem e colaboradores descreveram recentemente que, utilizando a ferramenta CRISPR/Cas9, foi possível inserir a sequência do CAR no locus da cadeia constante α do TCR (TRAC - T cell receptor alpha chain constant), causando a eliminação da expressão do TCR endógeno e expressão do receptor quimérico. Esta inserção do transgene no locus do TCR leva a um perfil de expressão mais fisiológico do transgene, melhorando a performance da célula CAR-T.
No entanto, estas abordagens seguem requerendo que linfócitos T sejam coletados de doadores saudáveis para serem manipulados geneticamente, realizando as expansões em lotes que podem atender apenas a algumas dezenas de pacientes. A utilização de uma fonte inesgotável de linfócitos T poderia reduzir a variabilidade deste processo e gerar um produto único para o tratamento de centenas de pacientes.
Seguindo esta linha, a U.S. Food and Drug Administration (FDA) aprovou os primeiros ensaios clínicos com a FT819, uma terapia com células CAR-T de “prateleira”, ou seja, prontas para uso. A pretensão é fazer estoques de um produto padrão para o tratamento imediato de quaisquer pacientes, sem necessidade dos protocolos atuais de expansão individualizada. FT819 foi desenvolvida pela biofarmacêutica Fate Therapeutics, e tem como alvo a proteína CD19 para o tratamento de células B malignas. Para evitar efeitos adversos, esse medicamento passa por uma série de modificações genéticas sequenciais, além da deleção do locus do TCR.
O diferencial dessa abordagem é a utilização de células tronco de pluripotência induzida (IPSCs - Induced Pluripotent Stem Cell) como material de partida ao invés dos linfócitos T. O primeiro ponto de utilizar IPSCs é que o protocolo de reprogramação já está bem definido, e é viável obter uma cultura ilimitada de células. Estas células podem então ser diferenciadas em linfócitos T. Assim, é possível criar um banco original de células com capacidade de se auto renovar e garantir o número total de células necessárias para a terapia do paciente. O segundo ponto é que os ensaios de modificações genéticas das células IPSCs já estão bem estabelecidos, não sendo um empecilho para a utilização dessas células expressando o receptor CAR. Utilizando o estágio específico de diferenciação de células T e o protocolo de expansão desenvolvido pela empresa, essas células T geradas são capazes de se expandir mais de 100.000 vezes e ter mais de 95% de pureza. Essa modificação permite ter um banco de células capazes de se expandir de forma eficiente e número de células adequado para tratar uma grande quantidade de pacientes.
Contudo, outras variações estão sendo utilizadas para otimizar esse teste clínico. Uma modificação foi a incorporação de um novo domínio de sinalização chamado 1XX CAR. Essa modificação foi apresentada por Judith Feucht e colaboradores e parece aumentar a potência terapêutica das células T. O grupo avaliou que a redundância representada pelos 3 motivos de ativação à base de tirosina (ITAMs - Immunoreceptor Tyrosine-based Activation Motif) derivados do CD3ζ no receptor quimérico poderia levar à exaustão dos linfócitos por hiperativação. O grupo então desenhou diferentes receptores com variações na ordem de ITAMs mutados (representados pelo X): 1XX, X2X, XX3 e X23. Em síntese, a configuração 1XX levou à melhor persistências de células T funcionais e ação antitumoral eficaz, sendo esta a escolhida para este ensaio clínico.
A FT819 demonstrou atividade antitumoral em ensaios pré-clínicos em camundongos enxertados com Nalm-6, alguns sobrevivendo mais que 80 dias após a inoculação do tumor. Além disso, quando comparado com os protocolos tradicionais de expansão de células T, a FT819 demonstrou superioridade. Com a aprovação agora divulgada pela agência reguladora para os testes clínicos, em breve saberemos mais sobre a eficácia das células FT819 em humanos.
Figura representativa do produto celular FT819. Com o objetivo de desenvolver uma célula T CAR+ universal, a FT819 possui algumas modificações: são células derivadas de IPSC com capacidade proliferativa e de renovação para formar um grande banco de células, possui uma inovadora configuração de domínio de sinalização intracelular (1XX) que aumenta sua eficiência e o transgene CAR é inserido do locus da cadeia α do TCR para eliminação da expressão do TCR endógeno, evitando doença enxerto contra o hospedeiro. TCR = Receptor de células T; KO = knockout; DECH = Doença enxerto contra o hospedeiro. Figura modificada. Fonte.
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